Por que temos diferentes tipos sanguíneos?

de Merelyn Cerqueira 0

Em 1900, o médico austríaco Karl Landsteiner descobriu os diferentes tipos de sanguíneos, ganhando em 1930 o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela pesquisa.

Tal descoberta permitiu que os cientistas desenvolvessem ferramentas cada vez mais poderosas e sofisticadas para analisar a biologia dos tipos de sangue. E eles de fato encontraram algumas informações intrigantes sobre eles – desde ascendência profunda e influências desses diferentes tipos de sangue em nossa saúde, por exemplo.

No entanto, a verdade é que, em muitos aspectos, os tipos sanguíneos permanecem estranhamente misteriosos, e os cientistas ainda precisam apresentar uma boa explicação para a existência de cada um deles.

“Não é incrível?” disse Ajit Varki, um biólogo da Universidade da Califórnia, em San Diego (EUA). “Quase cem anos depois de o Prêmio Nobel ter sido concedido por esta descoberta, ainda não sabemos exatamente para que servem”. 

Esta, de fato,foi uma das maiores descobertas da medicina: é graças a ela que os médicos estão cientes do exato tipo de sangue que precisam para salvar uma vida. Mas, este cenário nem sempre foi assim. Durante grande parte de nossa história, a ideia de transfusão de sangue era nada mais do que um sonho distante.

A má reputação da transfusão sanguínea humana

Médicos da Renascença apenas meditavam sobre o que poderia acontecer se colocassem sangue alheio nas veias de seus pacientes.

Alguns pensavam que este poderia ser um tratamento geral para todos os tipos de doença, até mesmo as mentais. Foi então que, em meados dos anos 1600, alguns especialistas resolveram testar a ideia, com resultados desastrosos. 

Um médico francês resolveu injetar sangue de bezerro em um paciente tido como “louco”. Este quase que prontamente começar a suar, vomitar e produzir urina de cor preta. Então,e depois de outra transfusão, o homem morreu.

Tais resultados negativos garantiram uma má reputação para a técnica da transfusão – algo que durou 150 anos. Mesmo no século 19, apenas alguns médicos ousavam experimentar o procedimento. Um deles, o britânico James Blundell, assistiu a muitas de suas pacientes morrerem de sangramento durante o parto.

Então, após a morte de uma paciente 1817, ele descobriu que não podia mais abdicar do método. “Eu não podia deixar de considerar que os pacientes poderiam muito provavelmente terem sido salvos por transfusão”, escreveu ele mais tarde.

No entanto, a ideia dele era que os pacientes deveriam receber apenas sangue humano. Enquanto que nenhum outro médico tentou novamente fazer transfusões, ele começou a fazê-las, projetando no processo um sistema de objetos cirúrgicos que poderiam ajudar a canalizar diretamente o sangue de um doador para um paciente. Então, depois de testar o aparelho em cães, Blundell resolveu realizar o primeiro procedimento em um homem que estava sangrando descontroladamente. Só a transfusão poderia lhe dar uma chance de vida”, escreveu ele.

Vários doadores forneceram a Blundell cerca 400 ml de sangue, que ele injetou no braço do homem. Após o procedimento, ele ouviu do paciente que se sentia melhor e menos fraco. No entanto, ele morreu dois dias depois da transfusão. 

A experiência terrível não abalou a confiança de Blundell, que ainda assim acreditava que a transfusão de sangue poderia ser um benefício para a humanidade. Nos anos seguintes, ele continuou tentando. Ao todo, entre as 10 transfusões que realizou, apenas quatro pacientes sobreviveram.

A descoberta

À época, nem Blundell e nem ninguém sabia que existiam diferentes tipos de sangue. Apenas mais tarde, e por meio de um procedimento bastante simples, é que essa descoberta foi feita. 

Para avaliar os motivos pelos quais as transfusões não davam certo no início do século 19, os cientistas, já do final do século, misturaram os sangues de pessoas em diferentes tubos de ensaio.

Eles perceberam que às vezes as células vermelhas do sangue se uniam. No entanto, descartaram a relevância dessa coagulação, uma vez que os sangues testados eram de pacientes doentes.

Ninguém estava preocupado em ver se esse aglomerado ocorria em sangue saudável, até que Karl Landsteiner o fez. Ao verificar essa ocorrência, mapeou os padrões de coagulação a partir de sangue colhido entre membros de seu laboratório e até dele mesmo. Ele separou cada amostra em glóbulos vermelhos e plasma, e em seguida combinou-as. 

Landsteiner descobriu que o aglomerado só ocorria se misturasse o sangue de certas pessoas. Trabalhando através de todas as combinações possíveis, classificou-os em três grupos: A, B e C (que mais tarde foi renomeado para O). Anos mais tarde, outros pesquisadores descobririam o grupo AB.

Em meados do século 20, o pesquisador norte-americano Philip Levine descobriu uma nova maneira de categorizar o sangue, com base em um fator Rh. 

Quando Landsteiner misturou o sangue das diferentes pessoas, descobriu que deveria seguir certas regras. Se mesclasse o plasma do grupo A com glóbulos de outras pessoas de mesmo grupo, o plasma e as células permaneceriam um líquido. A mesma regra era aplicada ao grupo B. No entanto, quando misturou o plasma do grupo A com glóbulos vermelhos do B, notou que as células se aglomeravam (e vice-versa).

Já o sangue das pessoas do grupo O era o mais diferente. Quando Landsteiner misturou os glóbulos vermelhos A ou B com o plasma O, as células se aglomeraram. Mas, ele viu que poderia adicionar plasma A ou B às células vermelhas do sangue O, sem que houvesse coagulação. E é justamente esse processo de coagulação que tornar o processo de transfusão algo tão perigoso. Se um médico acidentalmente injeta sangue B no braço de um paciente com sangue A, o corpo dele ficaria carregado de minúsculos coágulos. Eles então interromperiam a circulação a ponto de fazer a pessoa sangrar maciçamente, lutar para respirar e potencialmente lhe causar a morte.

O problema dos antígenos

Landsteiner não sabia exatamente o que distinguia um sangue de outro. Apenas gerações posteriores de cientistas conseguiram verificar que os glóbulos vermelhos de cada tipo eram feitos de diferentes moléculas superficiais. No tipo A, por exemplo, essas moléculas se constroem em duas etapas, como dois andares de uma casa. O primeiro andar é chamado antígeno H, e ele é responsável por construir o segundo, chamado antígeno A.

Pessoas do grupo B, por outro lado, constroem esses andares da casa de uma forma diferente, enquanto que, os de tipo O possuem apenas um andar, o de antígeno H. Logo, o sistema imunológico de cada pessoa se familiariza com seu tipo de sangue e é por isso que, no caso de uma transfusão errada, ele responde atacando o sangue como se este fosse um invasor. A exceção dessa regra é o grupo O, que possui antígenos (H) presente em todos os outros tipos de sangue, o que faz deste um doador universal e especialmente valioso para os bancos de sangue.

Há de se considerar que a descoberta de Landsteiner abriu caminho para transfusões de sangue cada vez mais seguras. Até hoje os bancos de sangue utilizam seu método básico de coagulação como um teste rápido e confiável para verificar os tipos sanguíneos.

Fenótipo de Bombaim

Embora a descoberta de Landsteiner tenha respondido alguma das perguntas relacionadas ao caso, que envolvia a morte dos pacientes no início do século 19, ele de fato levantou novas, como por exemplo: por que existem diferentes tipos de sangue? Por que as células sanguíneas se preocupam em construir casas moleculares? Por que elas são diferentes?

A demonstração mais marcante de nossa ignorância sobre os benefícios associados a cada tipo sanguíneo veio à tona em Bombaim, em 1952. Os médicos teriam descoberto que um grupo de pacientes não possuía tipos de sangue conhecidos (ABO), nem A, B, AB, ou O. Esta descoberta foi descrita como fenótipo de Bombaim, e embora tenha sido verificada em outras pessoas mais tarde, ainda é considerada extremamente rara.

Enquanto não há danos associados a essa condição, o único problema é se o diagnosticado precisar de uma transfusão de sangue: as pessoas no fenótipo de Bombaim só podem receber sangue de pessoas com a mesma condição e, embora o grupo O seja considerado doador universal, neste caso, ele pode se tornar uma causa de morte. O fenótipo de Bombaim prova que não há uma vantagem imediata para os sangues ABO.

Alguns cientistas acreditam que a explicação por trás dos tipos de sangue possa estar na variação. Isto é, cada um deles pode nos proteger de diferentes doenças.

Tipo sanguíneo x infecções

Em meados do século 20, os médicos começaram a encontrar diversas associações relacionadas aos tipos de sangue e infecções, e essa lista continua a crescer. “Ainda há muitas associações encontradas entre grupos sanguíneos e infecções, cânceres e uma variedade de outras doenças”, disse Pamela Greenwell, da Universidade de Westminster.

Pessoas em grupo A, por exemplo, são mais propensas a desenvolverem câncer pancreático e leucemia, bem como infecções como varíola, doenças cardíacas e malária. Já as de tipo O, são mais propensas a desenvolverem úlceras e ruptura nos tendões de Aquiles.

Curiosamente, algumas dessas doenças sequer estão relacionadas ao sangue. A solução para esse mistério, em particular, é que as células sanguíneas não são as únicas células do corpo a produzir antígenos. Eles também são produzidos pelos vasos sanguíneos, vias aéreas, pele e cabelo, por exemplo.

Também é possível que essa relação seja um indício de que essa variedade de sangue tenha surgido há milhões de anos, quando nossos antepassados foram confinados à condição de terem inúmeros patógenos. Alguns deles podem ter-se adaptado para explorar cada um dos diferentes antígenos do sangue.

Fonte: Science Alert Fotos: Reprodução / Science Alert

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