Veja o que acontece com o cérebro humano após 40 dias sem açúcar

de Merelyn Cerqueira 0

No campo da neurociência, a comida é algo chamado de “recompensa natural”. Para que possamos sobreviver como uma espécie, coisas como comer, fazer sexo, e afins devem ser prazerosas para o cérebro, para que esse tipo de comportamento seja reforçado e repetido.

A evolução resultou da via mesolímbica, um sistema cerebral que decifra essas recompensas naturais.

Assim, quando fazemos algo prazeroso, uma região do cérebro chamada área tegmental ventral (ATV), que é um agrupamento de cerca de 450 mil neurônios, utiliza um neurotransmissor dopamina para sinalizar o núcleo accumbens – uma estrutura cerebral associada à sensação de prazer.

A conexão entre o núcleo accumbens e o córtex pré-frontal estão relacionadas aos nossos movimentos. É ela que determina se decidimos ou não pegar outro pedaço de um delicioso bolo de chocolate.

O córtex pré-frontal também ativa esses hormônios que dizem ao nosso corpo: “Ei, esse bolo é realmente bom.

E vou me lembrar disso no futuro”. Contudo, não são todos os alimentos que podem ser considerados gratificantes, como os mais ácidos e amargos, por exemplo.

Essa preferência nós adquirimos de forma evolutiva, e graças à via mesolímbica, que reforça que as coisas doces são fontes saudáveis de carboidratos para o corpo.

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As dietas modernas basicamente tomaram vida própria

Uma década atrás, estimava-se que um americano em média consumia 22 colheres de chá de açúcar por dia, totalizando 350 calorias extras. Esse tem aumentando com o passar dos anos.

Há alguns meses, um especialista sugeriu que um britânico consumia em média cerca de 238 colheres de chá de açúcar por semana. 

Hoje, convenientemente, é cada vez mais difícil encontrarmos alimentos processados e preparados que não tenham açúcares adicionados em sua composição, seja para melhorar o sabor, a preservação ou ambos.

Estes açúcares, no entanto, nos deixam viciados. De forma que, assim como as drogas (nicotina, cocaína e heroína, por exemplo) atingem o caminho de recompensa do cérebro, tornando seus usuários dependentes – evidências neuroquímicas comprovam que açúcar trabalha do mesmo jeito.

O vício do açúcar é real

Um estudante de pós-graduação, identificado apenas como Andrew, que mora em Hershey, na Pensilvânia (EUA), considerada a “Capital Mundial do Chocolate”, resolveu entrar em uma espécie de “quaresma” no ano passado. Ele decidiu que por 40 dias não comeria açúcar.

“Os primeiros dias são um pouco difíceis”, disse Andrew. “Quase parece que você está se desintoxicando de drogas. Eu me vi comendo muitos carboidratos para compensar a falta de açúcar”. 

Consideramos quatro componentes importantes para o vício: abstinência, consumo compulsivo, desejo e predisposição ao vício de outras drogas. Todos estes foram observados em modelos animais dependentes de açúcar ou drogas de abuso.

Este experimento simples contou com privação de 12 horas por dia de alimento para esses animais. Depois, eles receberam 12 horas de acesso a uma solução açucarada e comida normal.

Após um mês vivenciando esse padrão diário, os ratos apresentaram comportamentos semelhantes ao de usuários de drogas.

Eles também apresentaram sinais de ansiedade e depressão, durante o período de privação de alimentos.

Muitos dos ratos tratados com açúcar, que mais tarde foram expostos a drogas de abuso, como cocaína e opiáceos, demonstraram comportamentos dependentes em relação aos ratos de um grupo de controle que não consumiram doces.

Assim como ocorre com as drogas, o açúcar provoca a liberação de dopamina no núcleo accumbens. Em longo prazo, o consumo regular realmente altera a expressão gênica e a disponibilidade de receptores de dopamina tanto no meio do cérebro quanto no córtex frontal. 

Especificamente, o açúcar aumenta a concentração de um tipo de receptor de prazer chamado D1, ao passo em que diminui outro tipo de receptor, chamado D2, que é um inibidor.

O consumo regular de açúcar também inibe a ação do transporte dopamina, uma proteína que bombeia o neurotransmissor para fora da sinapse e de volta para os neurônios.

Em resumo, isso significa que o acesso repetido ao açúcar ao longo do tempo leva à sinalização prolongada de dopamina, uma maior excitação das vias de recompensa do cérebro, bem como uma necessidade cada vez maior de açúcar. O cérebro logo se torna tolerante ao açúcar, sendo necessárias quantidades cada vez maiores para suprimir à vontade.

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A abstinência de açúcar também é real

Embora os estudos mencionados anteriormente tenham sido realizados em roedores, não é exagero dizer que processos semelhantes podem estar acontecendo com os seres humanos. 

“O desejo pelo açúcar nunca parou”, disse Andrew sobre sua experiência de Quaresma. “Mas, isso provavelmente era psicológico. Ficou mais depois da primeira semana”.

Em um estudo realizado em 2002 pelo cientista Carlo Colantuoni e colegas da Universidade de Princeton comprovou-se que ratos que haviam sido submetidos a um protocolo típico de dependência de açúcar passaram por crises de abstinência. Isto foi facilitado pela privação de alimentos doces ou pelo tratamento com naxolona – receptores do sistema de recompensa do cérebro. Ambos os métodos de abstinência levaram os animais a problemas físicos, incluindo dentais, tremores nas patas e cabeça.

Experimentos semelhantes de abstinência também relataram comportamentos semelhantes à depressão. Ratos nestas condições são mais propensos a mostrar comportamentos passivos, sugerindo sentimentos de desamparo. 

Um estudo mais recente feito por Victor Mangabeira e colegas, publicando na revista Physiology & Behavior, sugeriu por meio de experimentos feitos em ratos que abstinência de açúcar está associada ao comportamento impulsivo.

Embora essas experiências tenham sido feitas em animais, elas certamente nos dão uma visão dos fundamentos neuroquímicos da dependência, abstinência e comportamentos provocados pelo consumo de açúcar. 

Há também inúmeros artigos e livros que debatem sobre a energia ilimitada e felicidade que acompanham o consumo do produto. Contudo, a onipresença dele em nossa dieta, bem como noções de dependência ainda são temas bastante tabus.

Quanto tempo até estarmos livres da abstinência?

Não há uma reposta certa para essa pergunta. Nossos organismos são diferentes e nenhum estudo em humanos abordou isso.

Mas, levando em conta a experiência de Andrew, em 40 dias sem açúcar ele já tinha superado o pior, e provavelmente conseguiu até mesmo reverter alguns de seus sinais de dopamina alterada. 

“Lembro-me de comer o meu primeiro doce e pensar que ele era muito doce”, disse ele. “Eu tive que reconstruir minha tolerância”. E considerando que ele vive na “Capital Mundial do Chocolate”, podemos imaginar que ele certamente o fez.

Texto traduzido e adaptado, e publicado originalmente pela neurocientista Jordan Gaines para a The Conversation.

Fonte: The Conversation Fotos: Reprodução / The Conversation

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