Resistência das bactérias avança e ameaça nosso futuro. Como seria um mundo sem antibióticos?

de Redação Jornal Ciência 0

A resistência antimicrobiana é uma das maiores ameaças globais à saúde, à segurança alimentar e ao desenvolvimento. Os antibióticos, que há menos de um século revolucionaram o tratamento de infecções, hoje enfrentam uma crise de eficácia.

Antes de sua descoberta, infecções comuns podiam ser fatais. Infecções graves, como a tuberculose, nem sempre eram fatais. Até metade das pessoas morria dentro de 1 ano com as formas mais graves, mas algumas pessoas se recuperavam sem tratamento e o restante tinha uma infecção crônica contínua que corroía lentamente o corpo ao longo de muitos anos.

Especialistas de todo o mundo estão focados em entender como chegamos a este ponto crítico e quais são as soluções possíveis para encontrarmos novos antibióticos que possam salvar a humanidade em um futuro breve.

A vida (e a morte) antes dos antibióticos

Você provavelmente já ouviu falar da descoberta acidental da penicilina, quando esporos de fungos caíram em um prato com bactérias deixadas durante um fim de semana, em 1928. Mas, o primeiro paciente a receber a penicilina foi um exemplo instrutivo do impacto do tratamento.

Em 1941, o policial Albert Alexander teve um arranhão no rosto que infeccionou. Ele foi hospitalizado, mas, apesar de vários tratamentos, a infecção progrediu e envolveu sua cabeça. Isso exigiu a remoção de um de seus olhos.

O paciente Albert Alexander foi o primeiro a receber a penicilina. Foto: Reprodução 

Howard Florey, o farmacologista australiano que trabalhava em Oxford, estava preocupado com a possibilidade de a penicilina ser tóxica para os seres humanos. Portanto, ele achou que era ético dar esse novo medicamento a um paciente em uma condição desesperadora.

O policial Alexander recebeu a dose disponível de penicilina. No primeiro dia, sua condição começou a melhorar. Naquela época, porém, era difícil produzir penicilina. Uma maneira de ampliar o suprimento limitado era “reciclar” a penicilina excretada na urina do paciente. Apesar disso, os suprimentos acabaram no quinto dia de tratamento de Alexander. Sem tratamento adicional, a infecção voltou a se instalar.

O policial Alexander acabou morrendo um mês depois. Agora estamos diante de um mundo no qual os antibióticos podem estar se esgotando, não por dificuldades na fabricação, mas porque estão perdendo sua eficácia.

Para que usamos antibióticos?

Os antibióticos reduzem a duração da doença e a chance de morte por infecção. Eles também previnem infecções em pessoas de alto risco, como pacientes submetidos a cirurgias e pessoas com sistemas imunológicos enfraquecidos.

Mas os antibióticos nem sempre são usados adequadamente. Estudos mostram consistentemente que 1 ou 2 doses previnem as infecções após cirurgias, mas os antibióticos são frequentemente prescritos por vários dias, desnecessariamente. E, às vezes, usamos o tipo errado de antibiótico.

Pesquisas mais recentes descobriram que 22% do uso de antimicrobianos em hospitais é inadequado. Em algumas situações, isso é compreensível. As infecções em diferentes locais do corpo são geralmente causadas por diferentes tipos de bactérias.

Quando o diagnóstico não é certo, erramos geralmente por precaução, administrando antibiótico de amplo espectro para garantir que tenhamos tratamentos ativos para todas as infecções possíveis, até que haja mais informações disponíveis.

Em outras situações, há um grau de inércia. Se o paciente estiver melhorando, os médicos tendem a simplesmente continuar o mesmo tratamento, em vez de mudar para uma opção mais apropriada.

Na prática, a questão da incerteza diagnóstica e da inércia terapêutica costuma ser ampliada. Os pacientes que se recuperam após o início do uso de antibióticos geralmente não precisam fazer exames ou voltar para revisão, portanto, não há uma maneira fácil de saber se o antibiótico foi realmente necessário.

Em outras infecções, a resistência pode se desenvolver se os tratamentos não forem administrados por tempo suficiente. Esse é particularmente o caso da tuberculose, causada por uma bactéria de crescimento lento que requer um curso particularmente longo de antibióticos para ser curada.

Assim como nos seres humanos, os antibióticos também são usados para prevenir e tratar infecções em animais. Entretanto, uma parte dos antibióticos é usada para promover o crescimento dos animais.

Por que o uso excessivo é um problema?

As bactérias se tornam resistentes ao efeito dos antibióticos por meio da seleção natural — aquelas que sobrevivem à exposição aos antibióticos são as cepas com um mecanismo para escapar de seus efeitos.

Por exemplo, os antibióticos às vezes são administrados para prevenir infecções recorrentes do trato urinário, mas, como consequência, qualquer infecção que se desenvolva tende a ser causada por bactérias resistentes.

Quando ocorre resistência aos antibióticos de primeira linha, muitas vezes é preciso encontrar outros tratamentos eficazes. Alguns desses antibióticos de última linha são aqueles que foram substituídos porque tinham efeitos colaterais graves ou não podiam ser administrados em comprimidos.

Novos medicamentos para algumas bactérias foram desenvolvidos, mas muitos são caríssimos.

Tratando os antibióticos como recurso valioso

Os antibióticos são uma classe rara de medicamentos onde o tratamento de um paciente pode potencialmente afetar o resultado de outros pacientes, por meio da transmissão de bactérias resistentes. Portanto, assim como os esforços para combater as mudanças climáticas, a administração de antibióticos depende da mudança de ações individuais para beneficiar a comunidade.

Assim como a mudança climática, a resistência aos antibióticos é um problema complexo quando visto em um contexto mais amplo. Como todo comportamento humano, a prescrição de antibióticos é complicada, e fatores como o que os médicos consideram ser uma prescrição “normal”, podem ser importantes.

Também há problemas com o modelo econômico para o desenvolvimento de novos antibióticos. Quando um novo antibiótico é aprovado para uso pela primeira vez, a primeira reação dos prescritores é não usá-lo, seja para garantir que ele mantenha sua eficácia ou porque geralmente é muito caro.

Isso não incentiva o desenvolvimento de novos antibióticos, principalmente quando as indústrias farmacêuticas podem ter mais interesse em investir seus recursos bilionários no desenvolvimento de medicamentos para doenças que os pacientes irão tomar por décadas ou por toda a vida. Diferentemente dos antibióticos, onde o uso é por um curto período.

A resistência avança lentamente

Se não agirmos, estaremos diante de um cenário quase impensável onde os antibióticos não funcionarão mais e seremos lançados de volta à idade das trevas da medicina. Essas foram as palavras de David Cameron, ex-primeiro-ministro do Reino Unido.

A resistência aos antibióticos já é um problema. Quase todos os médicos de doenças infecciosas já receberam pacientes com infecções que eram essencialmente intratáveis ou que tiveram de se esforçar para encontrar suprimentos de antibióticos de última linha.

Já existem hospitais em algumas partes do mundo que tiveram de considerar se ainda é viável tratar cânceres, devido ao alto risco de infecções por bactérias resistentes a antibióticos.

Um estudo global estimou que, em 2019, quase 5 milhões de mortes ocorreram com uma infecção envolvendo bactérias resistentes. Muitas poderiam estar vivas se existissem novos antibióticos que pudessem ajudar.

O relatório O’Neill, do Reino Unido, previu que as mortes causadas pela resistência antimicrobiana poderiam aumentar para 10 milhões por ano e custar de até 3,5% do PIB global até 2050.

O que podemos fazer?

Ter a conscientização sobre a autolimitação de muitas infecções é fundamental; é importante reconhecer que nem todas as infecções exigem tratamento com antibióticos. A educação pública desempenha um papel crucial nesse aspecto, esclarecendo quando o uso desses medicamentos é essencial.

Além disso, é necessário usar os antibióticos disponíveis de maneira responsável, administrando-os pelo menor tempo efetivo. Isso deve ser apoiado por políticas de saúde que incentivem a prescrição adequada.

O monitoramento contínuo de infecções por bactérias resistentes é outra estratégia vital, fornecendo dados essenciais para formular políticas de controle. Este acompanhamento permite identificar tendências e padrões de resistência, fundamentais para a tomada de decisões dos cientistas e autoridades.

No que diz respeito ao uso de antibióticos em animais, é preciso eliminar a prática de administrá-los como promotores de crescimento.

A prevenção de infecções por meio de vacinação e higiene básica também reduz a necessidade de antibióticos. Por fim, o incentivo à pesquisa de novos antibióticos é crucial. É necessário garantir o fluxo contínuo de novos medicamentos, assegurando que as gerações futuras tenham acesso a tratamentos eficazes.

Fonte(s): The Conversation Imagem de Capa: Reprodução / Gavi Foto(s): Reprodução / Gavi e Domínio Público

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