Conheça a experiência inusitada que mostrou como a digestão funciona

de Gustavo Teixera 0

Por volta de 1.800, se um médico queria ver o que tinha dentro de uma pessoa, tinha que literalmente abri-la – um procedimento pelo qual os pacientes não faziam muita questão de passar.

Mas um homem ferido por bala de espingarda no estômago apresentou uma possibilidade intrigante: deixar o ferimento aberto para entender como funciona a digestão.

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Parece loucura, mas realmente aconteceu. Um médico no século XIX alimentou o homem com a ferida no estomago aberta e depois retirou o alimento para avaliar o que aconteceu. Por incrível que pareça, foi a partir deste experimento que a humanidade descobriu que a digestão é um processo químico.

A história começa em 1822, com um médico chamado William Beaumont, que trabalhou como cirurgião do exército no norte de Michigan. Beaumont recebeu uma chamada urgente de que alguém tinha acabado de tomar um tiro com uma espingarda e necessitava de cuidados médicos.

Quando chegou lá, Beaumont encontrou o canadense Alexis St. Martin, que tinha reputação por beber demais e causar problemas, gravemente ferido do tiro. A bala atingiu seu peito e abdômen, deixando um grande buraco em seu tronco. Beaumont que não tinha educação médica formal – pois naquela época o aprendizado era a única maneira real de se tornar um médico – foi capaz de salvar St. Martin após uma longa operação para remover o metal da bala de suas feridas.

Apesar de várias operações, St. Martin teve um problema persistente: uma fístula aberta que se formou, porque o ferimento da bala ainda não tinha sido fechado. Fístula é uma espécie de “túnel” entre duas áreas do corpo feito intencionalmente por um cirurgião com finalidade terapêutica.

A fístula do tiro de St. Martin não tinha sido fechada intencionalmente, para dar a Beaumont acesso direto ao estômago de St. Martin. Enquanto isso pareça ser uma maneira fácil do paciente pegar uma infecção e morrer em poucos dias, o ácido do estômago de St. Martin na verdade higienizou a ferida e a manteve saudável.

Beaumont olhou para aquela fístula e viu nela uma grande oportunidade. Beaumont contratou St. Martin para consertar algumas coisas de sua casa e em troca, ele monitoraria a ferida de St. Martin e, até mesmo faria alguns experimentos para aprimorar os estudos. St. Martin concordou, e nas décadas seguintes os dois viveram juntos. Durante esse tempo, Beaumont aproveitou a oportunidade e decidiu descobrir o que acontece dentro de um estômago.

Para suas experiências, Beaumont monitorou de perto todas as coisas que St. Martin comia todos os dias, e pegou amostras do ácido do estômago, enviando-as para análise química. Dois anos após este processo, Beaumont fez sua primeira publicação no Philadelphia Medical Recorder, em um relatório intitulado: “A Case of Wounded Stomach” – “Um caso de estômago ferido”, em tradução livre.

“Este caso oferece uma excelente oportunidade para experimentar os fluidos gástricos e o processo de digestão: não causaria dor, nem causaria o menor desconforto extrair uma brânquia de fluido a cada dois ou três dias, pois frequentemente flui espontaneamente em consideráveis quantidades”, explicou Beaumont no estudo.

Após tudo ser feito, Beaumont publicou outro trabalho, que contou todas as experiências e chegou à conclusão de que ácido clorídrico e o movimento muscular eram em grande parte os responsáveis pela digestão. Ele também viu uma ligação entre a taxa de digestão e a doença, preparando o cenário para futuras experiências. Esta descoberta inicial pavimentou o caminho para outros cientistas descobrirem todas as complexidades da digestão.

Por exemplo, Ivan Pavlov usou uma fístula quando fez a experiência em um cão, que trouxe maior compreensão do condicionamento clássico, relata Tia Ghose no site Live Science. Quanto à dupla, Beaumont viveu até 1853, morrendo aos 67 anos, depois de sofrer uma queda da escada. St. Martin, que teve sorte de ficar vivo, virou fazendeiro e faleceu em 1880 aos 83 anos.

Graças às experiências insanas de um homem e seu paciente, alicerces foram formados e nos levaram à compreensão de uma parte vital de nossos corpos.

[ Science Alert ] [ Fotos: Reprodução / Science Alert ]

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