Há quem acredite que as provas que envolvem diferenças entre homens e mulheres, relacionadas às formas de aprender, falar, resolver problemas e até mesmo ler mapas, podem ser encontradas a partir de escaneamento cerebral.

Ainda, há quem defenda que escolas sejam separadas por gênero, ou que mulheres sejam retiradas das forças armadas, bem como os que destacam que a diferença entre homens e mulheres pode ser identificada por áreas especificas do cérebro. Em um artigo publicado originalmente pela The Conversation, Gina Rippon, uma professora de Neuroimagem Cognitiva, da Universidade Aston, no Reino Unido, dissertou sobre o assunto.

Tal poder foi firmemente aproveitado em um debate em curso que argumenta sobre as diferenças entre ambos os gêneros. A ideia de que o cérebro é responsável pelas diferenças entre os sexos já existe há um bom tempo, mais especificamente desde o século 18, com os cientistas descobrindo que os cérebros das mulheres são ligeiramente menores do que os dos homens.

Essa constatação foi apoiada por uma crença antiga chamada de “determinismo biológico”, que trata da ideia de que diferenças biológicas refletem na ordem natural das coisas, e que interferiu com perigo em ideias formuladas pela sociedade, em questões de “superioridade” e “inferioridade”.

Infelizmente, a ideia é usada até hoje. O chamado “neurossexismo” é a prática de alegar que existem diferenças entre o cérebro de homens e mulheres, o que pode explicar a ideia de inferioridade e inadequação associada às mulheres para determinadas funções. Ao definir as áreas específicas do cérebro associadas a empatia, aprendizagem de linguagem e processamento espacial, os neurossexistas criaram uma “lista” das diferenças entre os sexos. Isso inclui ideias de que os homens são mais lógicos enquanto que as mulheres mais emotivas.

O problema de uma “neurociência populista”

Os avanços tecnológicos têm oferecido cada vez mais técnicas de imagens melhoradas, incluindo perfis mais detalhados da atividade cerebral, fornecendo um enorme conjunto de dados aos pesquisadores. Uma descoberta mais recente sugeriu que nosso cérebro realmente pode ser moldado a partir de experiências diferentes, incluindo as associadas com “ser” homem e mulher. Logo, isso ilustraria claramente o problema da abordagem do determinismo biológico, ao passo que também mostra a necessidade de se contabilizar variáveis como educação, status econômico e social ao comparar características cerebrais.

Psicólogos também começaram a mostrar a existência de traços psicológicos femininos e masculinos dentro de um espectro. Um estudo recente revisou uma série dessas supostas características comportamentais e comprovaram que elas normalmente não se enquadram em categorias consideras puras, binárias não-sobrepostas. Esses argumentos não desapareceram, e até hoje podem ser lidos e ilustrados em livros de autoajuda, anúncios, artigos de jornais, meios de comunicação, e culturas – mesmo que geralmente contestados.

Essa neurociência populista é muitas das vezes baseada em um modelo falho da capacidade cerebral. Ela tende a ser apresentada como uma espécie de “cinema verdade” (conceito teorizado por Dziga Vertov), oferecendo em tempo real acesso imediato às estruturas cerebrais claramente definidas, bem como funções. No entanto, esses mapas são na verdade produtos finais de uma longa cadeia de manipulação de imagens e complexos tratamentos estatísticos especialmente concebidos para destacar possíveis diferenças.

E de quem é a culpa?

Assim como boa parte da culpa pode ser associada à indústria midiática e ao marketing, esse tipo de publicação, muitas vezes, é sustentando pela própria comunidade científica. Alguns pesquisadores simplesmente não conseguem reconhecer de forma suficiente o papel das variáveis mais amplas durante a concepção de um estudo ou seleção de participantes. Termos como “fundamental” e “profundo” frequentemente são apresentados em resumos de estudos feitos sobre diferenças de gênero, mesmo quando as diferenças observadas são pequenas ou estatisticamente insignificantes.

Há ainda a interpretação de termos estereotipados desatualizados, por exemplo, assumir que os homens possuem superioridade espacial ou que as mulheres têm maior destreza linguística, quando tais afirmações sequer foram verificadas nesta fase digital que vivemos. Considerada uma prática científica questionável, ela realimenta um “neurossexismo” preconceituoso e inconveniente, que trata uma suposta “verdade” de que homens e mulheres sejam imutavelmente diferentes.

Ao desafiar esse “neurossexismo” não estamos negando a existência de quaisquer diferenças entre os sexos, embora essa acusação já tenha sido feita. Um estudo sobre saúde mental, por exemplo, mostrou que existem diferenças de gênero importantes sobre a incidência de doenças como depressão, TDAH e autismo. Logo, reconhecer essas diferenças pode ser a chave para o desenvolvimento de tratamentos adequados.

No entanto, sabemos que o conceito de cérebro “masculino” e “feminino” é impraticável e que a lista de diferenças psicológicas associada ao gênero é falha. Porém, pode levar um certo tempo para que essas crenças de longa data sejam verdadeiramente desacreditadas. Para isso, é necessário garantir que cientistas, mídia e público em geral estejam cientes de que identificar o problema é um bom lugar para começar.

[ IFLS ] [ Foto: Reprodução / IFLS ]

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