Em 4 de novembro de 1818, Andrew Ure, um químico escocês se encontrava ao lado do cadáver de um assassino que acabara de ser executado por forca.

Ure realizava uma demonstração de pesquisa anatômica para um público de estudantes curiosos, anatomistas e médicos da Universidade de Glasgow, na Escócia. O fato é que não se tratava de uma dissecação convencional, o químico segurava duas varas metálicas carregadas por uma bateria de 270 volts que eletrocutava o órgão enquanto o corpo convulsionava e se contorcia.

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Galvanismo

De acordo com um artigo publicado originalmente pela Atlas Obscura, o escocês era um dos muitos cientistas que nos séculos 18 e 19 conduziram experiências a partir de um método chamado galvanismo – estimulação dos músculos por meio de pulsos de correntes elétricas. O método produziu efeitos impressionantes, atraindo cada vez mais cientistas e artistas, e inspirou Mary Shellew a escrever sua obra-prima literária, “Frankenstein”. Enquanto a maioria dos cientistas utilizava o galvanismo para procurar mais informações sobre a vida, Ure tinha a intenção de reanimar mortos.

Segundo Juliet Burba, curadora-chefe da exposição “Mary and Her Monster”, do Bakken Museum, em Minnesota, EUA, esta era uma época em que as pessoas estavam tentando entender a origem da vida, enquanto a religião perdia parte de seu poder.  “Havia muito interesse nas perguntas: ‘Qual a essência que anima a vida? Poderia ser a eletricidade?

Em 1780, o italiano Luigi Galvani, um professor de anatomia, descobriu que poderia fazer com que os músculos de um sapo morto se contorcessem utilizando eletricidade. Rapidamente, o método ficou popular e passou a ser experimentado em outros animais maiores, entre eles um boi que recebeu uma carga tão forte que provocou a expulsão de fezes.

Até mesmo pessoas fora da Ciência estavam impressionadas pelo poder da eletricidade. Elas pagavam para assistir porcos e touros serem eletrificados e para acompanhar dissecações públicas feitas em instituições de pesquisa, como a Companhia de Cirurgiões da Inglaterra, que mais tarde viria se tornar o Royal College of Surgeons.

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Dissecação como punição adicional

Logo, quando os cientistas se cansaram de testar animais, se voltaram para os cadáveres, particularmente os de assassinos condenados. Em 1751, a Inglaterra aprovou a Lei de Assassinato, que permitia as autoridades executarem condenados e fornecerem os corpos para experimentos científicos. Segundo Burba, as razões eram duas: não existiam corpos suficientes para os anatomistas e o método ainda serviria como uma punição adicional para os assassinos. “Era considerada uma punição adicional ter seu corpo dissecado”, disse.

Em agosto de 1818, Matthew Clydesdale, um mineiro de 35 anos, assassinou um homem de 80 anos com uma picareta de carvão. Sua condenação foi de morte por forca, onde ficou pendurado por quase uma hora. Seu sangue então foi drenado do corpo meia hora antes dos experimentos de Ure começarem.

A experiência de Andrew Ure

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Com pouca ou nenhuma experiência conhecida com eletricidade, Ure era um mero assistente de James Jeffray, professor de anatomia na Universidade de Glasgow. Apesar de ter estudado Medicina e servido no exército como cirurgião, Ure era mais conhecido por ensinar química.

Enquanto outros cientistas realizaram experimentos semelhantes, estudiosos afirmam que Ure estava convencido de que poderia restaurar a vida a partir da eletricidade. Ele então, carregou uma bateria com ácido nítrico e sulfúrico, diluídos cinco minutos antes de receber o corpo de Clydesdale. Já no teatro de anatomia da universidade, ele realizou incisões no pescoço, quadril e calcanhares, expondo diferentes nervos que seriam sacudidos pelas hastes metálicas.

As descrições do químico sobre a experiência em questão são praticamente vívidas. Ele notou, quase que poeticamente, que os movimentos convulsivos se assemelhavam a “um violento tremor de frio” e que os dedos de Clydesdale “moviam-se agilmente, como os de um violinista”.

Todos os músculos do semblante foram simultaneamente lançados em uma ação terrível: raiva, horror, desespero, angústia e sorrisos macabros”, disse a respeito da estimulação dos músculos do rosto. “Eles uniram a expressão hedionda no rosto do assassino, ultrapassando as representações mais selvagens de um Fuseli ou de um Kean. Neste momento, vários espectadores foram forçados a deixar o teatro por terror ou enjoo, e um cavalheiro chegou a desmaiar”, descreveu.

Todo processo durou cerca de uma hora, e foi consentido pelas autoridades, uma vez que visava métodos para “restauração da vida”. No entanto, as razões pela falta de sucesso do experimento foram consideradas decorrentes de falhas no método. O químico concluiu que se a morte não tivesse sido causada por lesões corporais, haveria probabilidade de que a vida pudesse ser restaurada. No entanto, ele considerou que se seu experimento tivesse êxito, não seria celebrado, pois estaria revivendo um assassino.

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Pano de fundo para “Frankenstein”

Mary Shelley estava ciente dos experimentos que os cientistas estavam realizando na época. Segundo Burba, as pessoas costumavam se interessar pelo assunto científico. “Havia um cruzamento de informações, então poetas sabiam muito sobre a Ciência, enquanto cientistas escreviam poesia”.

Dois anos antes do notório experimento de Ure, Mary Shelley criou a história de “Frankenstein”, publicando o romance em 1818, mesmo ano da experiência. Curiosamente, ela conta que Victor Frankenstein trouxe a vida um monstro, “em uma noite melancólica de novembro”. Ao contrário do evento de Ure, a cena da ressureição é breve, vaga e sequer menciona a palavra “eletricidade”.

Alguns historiadores acreditam que Shelley teria se inspirado em outros procedimentos médicos estudados à época, incluindo transfusão de sangue e transplante de órgãos. Somente na introdução a edição de 1831, é que ela chega a mencionar o método de galvanismo. Segundo Burba, as experiências galvânicas e “Frankenstein” aconteceram em conjunto, uma vez que o romance reflete o cenário vivido pelos cientistas à época. “Essas duas coisas estavam acontecendo em um ambiente cultural onde havia grande interesse na eletricidade, bem como o efeito dela nos corpos – se a eletricidade poderia ser a ‘faísca do ser’ que anima a vida”, explicou.

As experiências de Ure não trouxeram conhecimento científico real ou forneceram dados para experiências futuras. Os resultados foram descritos em panfletos e tidos como publicidade grosseira. No entanto, elas fizeram com que o nome do químico jamais fosse esquecido. As exibições de galvanismo logo saíram de moda, quando setores públicos começaram a vê-las como “satânicas”. As experiências, por outro lado, abriram caminho para novas tecnologias de ressuscitação, como a fibrilação. A diferença, é que estas eram feitas para salvar vidas e não reanimar cadáveres mortos.

Segundo Alex Boese, autor de “Elephants on Acid: And Other Bizarre Experiments” (“Elefantes no Ácido: e Outros Experimentos Bizarros”, em traução livre), por tradição, temos o costume de ignorar certos horrores em nome da Ciência. Temos códigos do que é um comportamento aceitável na vida cotidiana normal, mas as pessoas colocam uma bata de laboratório e então existem novos códigos de conduta totalmente diferentes que parecem se aplicar”, disse. “Estes cientistas no início do século 18 eram cavalheiros, membros da sociedade, e ainda estamos fazendo essas coisas que parecem totalmente de sociopatas e bizarras”.

Ele ainda lembra que algumas das experiências resistiram ao tempo, como as realizadas por estudantes de biologia, que dissecam e galvanizam pequenos animais em mesas de laboratório, assim como fez Galvani, séculos atrás.

[ Atlas Obscura ] [ Fotos: Reprodução / Atlas Obscura ]

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