Conheça a história do assassino que ajudou a criar o dicionário de Oxford

de Merelyn Cerqueira 0

Em uma determinada madrugada do ano de 1871, William Chester Minor, um cirurgião formado em Yale que serviu o exército norte-americano e morador de Connecticut, nos EUA, acordou assustado com a figura de um homem que estava parado no pé de sua cama, observando-o enquanto dormia. Ele notou que o homem sem rosto segurava pedaços de metal embebidos em alguma forma de veneno.

Na manhã seguinte, o homem acordou ileso e surpreso por não ter encontrado vestígios do intruso. Ele verificou os armários e embaixo da cama, mas ninguém aparentava ter entrado em seu quarto. No entanto, na noite seguinte o elusivo homem retornou, e o mesmo aconteceu em todas as noites seguintes, até que Minor decidiu que precisava de férias.

Abandonando seus alojamentos em Connecticut, ele navegou em direção à Londres, em busca de paz mental e uma boa noite de sono. Contudo, o que ele não imaginava quando escolheu o destino é que ali ficaria ainda mais próximo de seus supostos atormentadores, os membros de um grupo nacionalista irlandês que estava decidido a se vingar dele. Minor, então, andava pelas ruas da cidade ouvindo estes rebeldes sussurrarem planos de tortura e envenenamento.

O ex-cirurgião do exército até chegou a procurar a Scotland Yard para relatar o que ouvia. No entanto, os detetives simplesmente ignoravam seus avisos. Então, quando nada mudou, ele resolveu combater o problema com as próprias mãos. Para isso, conseguiu uma pistola, uma .38 Long Colt, e a carregou embaixo do travesseiro.

Assim, na noite de 17 de fevereiro de 1872, Minor acordou para ver a sombra do homem novamente em seu quarto. Desta vez, ele não deixou quieto. Pegou sua arma e quando viu o homem se afastar para a porta, pulou da cama e correu atrás dele. Eram duas horas da manhã e estava muito frio. Três ou quatro disparos foram feitos. Minor derrubou o causador de seus tormentos nas ruas de Londres e o observou sangrar. O morto era um homem chamado Georfe Merrett, um pai de família que estava a caminho do trabalho, na Red Lion Brewery.

Momentos depois que a polícia chegou à cena, Minor explicou aos policiais que ele não tinha feito nada de ilegal, apenas que se defendeu de alguém que havia entrado em seu quarto. O que ele não sabia, no entanto, era que apesar de suas crenças, nunca houve de fato um intruso. Os irlandeses, as tramas, o veneno – tudo tinha sido imaginado por ele. Nada era real. A única coisa real era o cadáver de George Merrett, deitado na rua.

Cerca de sete semanas depois, um tribunal considerou que William C. Minor, então com 37 anos, não era culpado por motivos de insanidade. De repente, o respeitado cirurgião do exército foi reduzido a um lunático iludido que acabou com a vida de um homem de família. Ele foi então sentenciado e enviado ao Asylum for Criminally Insane, em Broadmoor.

Foto mostrando Minor quando deu entrada (ainda jovem) no “Asilo para Criminosos Insanos”, em Broadmoor, e sua aparência após décadas confinado.

Antes dos episódios de instabilidade mental, Minor era considerado uma pessoa inteligente e promissora, que gostava de ler, pintar e tocar flauta. Tudo isso começou a mudar em 1864, quando ele visitou as linhas de frente da Guerra Civil Americana.

A criação do famoso Dicionário de Oxford

Ao contrário do dicionário oficial da língua francesa, o Dictionnaire de l’Académie Française, o Oxford English Dictionary simplesmente descreve palavras na forma como elas existem, mesmo se fizer parte apenas de uma porção da cultura inglesa, bem como acompanha a evolução da linguagem. Cada definição é suportada por citações, frases de livros, jornais e revistas que mostram como a palavra já foi usada, listadas em ordem cronológica para que os leitores possam ver como o significado particular de cada palavra evoluiu.

Em 1858, quando o projeto foi lançado, os editores do dicionário publicaram um anúncio pedindo voluntários para ler livros e enviar cartas e frases que iluminavam o significado de uma palavra. Eles examinariam as fichas enviadas e revisariam cada uma das citações. Se aceitas, seriam organizadas sob a definição apropriada.

A primeira tentativa da ideia de colaboração foi um fracasso. Os leitores enviaram mais de duas toneladas de sugestões, e as fichas foram mal organizadas. Após 20 anos, o entusiasmo voluntário diminuiu e o projeto perdeu força sob o peso de suas próprias ambições. Mas isso até o Dr. James Murray, um filólogo (especialista em estudar uma língua através de textos), assumir o projeto.

Dr. Murray em seu scriptorium, procurando uma nova fonte para o Dicionário de Oxford. A data da imagem é desconhecida.

Murray era, em todos os aspectos, um gênio linguístico. Ele sabia italiano, francês, catalão, espanhol, latim, holandês, alemão, flamengo e dinamarquês; bem como tinha uma compreensão básica das estruturas linguísticas do português, vaudoísta, franco-provençal (ou arpitano), celta, eslavo, russo, persa, sânscrito, hebraico, siríaco, árabe, aramaico, copta e fenício. 

Então, em 1789, publicou um novo apelo em revistas e jornais perguntando ao “público de língua inglesa” que se tornassem voluntários, mas dessa vez definindo exatamente o que precisavam.

Neste momento, nosso famoso “personagem” William C. Minor, que estava internado em Broadmoor há mais de sete anos, pôs as mãos em uma edição do The Athenaeum Journal, e teve acesso ao apelo de Murray. Em sua cela, Minor observou suas extensas pilhas de livros, pegou um e começou o que seria o trabalho de sua vida. Minor passava horas de seu dia lendo e pintando aquarelas e, embora estivesse em um manicômio, era coerente e inteligente em suas frases e parecia estar no controle de seus pensamentos e ações.

Índice catalogado por Minor, do livro de 1687 chamado “The Travels of Monsieur de Thevenot into the Levant”, com várias palavras e suas localizações em cada página específica.

Enquanto esteve internado, dava aulas de flauta aos detentos e chegou a pedir inúmeras desculpas à viúva de George Merret. No entanto, os médicos ainda o consideravam insano. A única coisa que ocupava a mente de Minor era o projeto do Oxford English Dictionary. O trabalho além de lhe proporcionar paz, também lhe ofereceu uma chance de um tipo diferente de redenção. Portanto, levava muito a sério sua tarefa e a realizava com muito zelo. No passado ele já havia colaborado com a criação de um dicionário de língua inglesa, guiado por estudiosos de Yale.  

Os editores do dicionário de Oxford aconselharam voluntários como Minor a se concentrarem em termos raros, palavras atraentes e ignorar o preenchimento gramatical. No entanto, muitos voluntários, ansiosos para impressionar os filólogos do projeto, tomaram diferentes direções. As ideias frustraram Murray, que reclamou.

Minor, por outro lado não enviou citações aleatórias. Seu trabalho na verdade foi muito bom, prolífico e metódico. Ao invés de copiar citações, ele revirou sua biblioteca particular e fez uma lista de palavras para cada livro, indexando a localização de quase todas as palavras que encontrou. Essa forma de catalogação transformou Minor em uma máquina de busca, a um ponto de simplesmente chegar aos editores de Oxford e perguntar: Então, com quais palavras vocês precisam de ajuda?

Se os editores, por exemplo, precisassem de ajuda para encontrar citações para o termo sesquipedalia (que significa “palavras muito longas”), Minor poderia rever seus índices e descobrir que ela estava localizada na página 339 do livro Elocução, na página 98 de Diálogos familiares e Discussões Populares, na página 144 de Jogos e Poemas Burlescos, e assim por diante. Basicamente, todas as palavras estavam devidamente catalogadas.

Quando a equipe do projeto o desafiou com uma palavra mais exótica, ficaram impressionados quando descobriram que ele já havia catalogado o termo. “Eles sabiam agora que, neste endereço misteriosamente anônimo em Crowthorne, com toda a probabilidade, tinham, como tal, um toque de palavras totalmente indexadas, juntamente com suas associações e citações”, disse Simon Winchester, que escreveu um livro sobre Minor.

Ao longo da década de 1890, Minor enviou até 20 citações por dia aos subeditores de Oxford. Suas inscrições tinham uma taxa de aceitação extremamente alta. Logo, quando o primeiro volume do dicionário foi lançado em 1888, chamado A New English Dictionary, James Murray adicionou uma linha de agradecimento à “Dr. W. C. Minor”.

Murray, no entanto, não fazia ideia de quem era Minor. “Eu pensei que ele era um médico experiente com gostos literários e muito tempo livre, ou talvez um médico ou cirurgião aposentado”, disse ele à época.

Em 1891, depois de trocarem cartas pessoais, Minor e Murray concordaram em se encontrar em Broadmoor. Quando Murray chegou, ficou surpreso ao descobrir que seu principal colaborador estava confinado dentro de um manicômio. No entanto, sentou-se com o homem e ali conversavam por horas. “Eu o encontrei, tanto quanto pude ver, tão sano quanto eu”, disse Murray.

Ao longo dos anos seguintes, Minor e Murray continuaram correspondentes e permaneceram amigos. Em 1910, depois de mais de três décadas em Broadmoor, Minor foi enviado a um hospital psiquiátrico nos EUA, com a ajuda de Murray. Ele morreu 10 anos depois, em 1920, embora nenhum obituário do país tivesse mencionado suas realizações. Contudo, seu nome ainda permanece oficialmente escrito nas edições dos famosíssimos dicionários de Oxford.

Fonte: Mental Floss Fotos: Divulgação / Arquivo Pessoal / Istock

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