A garota desconhecida, morta em Paris, que se tornou a mais beijada de toda a história; entenda

No final do século 18, a máscara mortuária de uma jovem desconhecida, afogada no rio Sena, em Paris, foi reproduzida milhares de vezes por toda a Europa, sendo eternizada como o rosto que ajudou a salvar milhões de pessoas

de Redação Jornal Ciência 0

Ninguém nunca soube seu nome. Não existia informações sobre sua existência quando em 1880 o corpo da jovem foi “puxado” no rio Sena, em Paris. Não sabemos nada sobre sua idade, família, antecedentes e o motivo que a levou para a cidade.

Não existia vestígios de hematomas ou feridas. O fascínio por seu rosto foi imediato pelos assistentes forenses: um sorriso enigmático e aparência de sono tranquilo ficou eternizado e o necrotério decidiu fazer uma cópia usando gesso.

Para sempre chamada de L’Inconnue de la Seine (A Mulher Desconhecida do Sena) começou uma nova história surpreendente após sua morte. Agora, pelas lojas de Paris, além dos bustos de Napoleão ou Beethoven, comuns de serem encontrado à época por toda parte, estava o sorriso da Desconhecida do Sena.

Molde de gesso com sua face virou sucesso em toda a Europa

Começava aí o início de sua história pós-escrita surreal, que ninguém jamais poderia prever, ajudando a salvar milhões de vidas em todo o mundo.

Histórias sobre sua morte

Muitas mentiras e lendas foram contadas sobre o motivo da morte da Desconhecida do Sena. Mas, a versão mais comumente contada em registros com mais de 150 anos, dizem que ela teria cerca de 16 anos quando morreu por suicídio.

Ninguém sabe ao certo se é verdade e não há como provar a teoria; não havia nenhuma marca em seu corpo, e muitos especialistas concluíram que ela tirou a própria vida.

Depois de que ela foi retirada do rio Sena, foi transportada para o necrotério de Paris e colocada em exibição pública ao lado dos corpos de outros mortos desconhecidos para fins de identificação. Apesar de parecer macabro, no final do século 18, era um tipo de diversão popular parisiense ver o “desfile de cadáveres” sem nome.

As janelas de todas as casas e sobrados ficavam cheias de pessoas para ver os próximos mortos que eram encontrados. A multidão era enorme, mas ninguém reconhecia L’Inconnue ou ninguém quis se apresentar por motivos desconhecidos.

Embora nunca tenha sido identificada pelas multidões que viram seu cadáver, ela não passou despercebida. Sua aparência chamava atenção instantânea de todos. Com ar sereno, deixou o necrotério escandalizado e um dos funcionários fez uma réplica de gesso do rosto.

A máscara torna-se um sucesso

Em pouco tempo, a aparência serena de L’Inconnue foi reproduzida e vendida em milhares de lojas de Paris. Em seguida, começou a ser exportada para a Alemanha e, logo, para toda a Europa. 

A máscara hipnotizante dessa garota morta desconhecida — descrita pelo filósofo Albert Camus como a “Mona Lisa afogada” — tornou-se um ícone cultural cobiçado à época.

Com o tempo, o tímido sorriso sereno da Desconhecida do Sena estava pendurado em salões por todo o continente europeu. Ela foi posicionada inclusive em oficinas de artistas, encarada como uma modelo muda imóvel.

Museus colocavam seu rosto exposto, como uma grande atração

Mas, não foram apenas desenhistas e pintores que ficaram cativados. Poetas e romancistas também estavam extasiados e usaram sua face em busca de inspiração para a criação de peças de teatro, romances, contos, poemas, poesias e diversas obras de ficção.

Sucesso de vendas, contos e mentiras

Em algum momento, A Desconhecida se transformou em uma espécie de “meme mórbido” para os escritores do início do século 20, que inventaram inúmeras histórias dramáticas para essa heroína de coração partido que teria se jogado na água, por amor.

“Os fatos eram tão escassos que todo escritor poderia projetar o que quisesse naquele rosto e inventar as mais fantasiosas histórias. A morte na água era um conceito muito romântico. Morte, água e mulher eram uma combinação tentadora”, disse a arquivista do museu Hélène Pinet ao jornal britânico The Guardian, em 2007.

Os críticos descreviam com “o ideal erótico do período”, por mais mórbido que possa parecer, representando o modelo estético que influenciou “toda uma geração de garotas alemãs” que buscavam modelar a aparência de seus corpos com o de A Desconhecida, de acordo com o IFLScience.

Início de seu modelo médico para salvar vidas

Meio século depois dessa explosão de fama e fascínio mórbido, L’Inconnue se transformou em objeto, novamente, com a ajuda de um homem que nasceu décadas depois de sua morte.

Seu nome era Asmund Laerdal, fabricante de brinquedos, na Noruega. Sua empresa começou no início dos anos 1940 imprimindo livros infantis e calendários antes de passar para pequenos brinquedos feitos de madeira.

Depois da guerra, Laerdal começou a fazer experiências com um novo tipo de material que entraria para a produção industrial em massa: o plástico.

Com esse material, macio e maleável, ele fabricou seu brinquedo mais famoso: a boneca “Anne”, que na Noruega do pós-guerra foi aclamada como o brinquedo do ano, por ter olhos adormecidos e cabelos naturais.

A boneca Anne, da Noruega, não era L’Inconnue. Pelo menos, não ainda. Um dia, o filho de 2 anos de Laerdal, o garotinho Tore, quase se afogou. Se ele não tivesse chegado a tempo e puxado o menino desacordado da água e feito manobras desajeitadas para tentar salvar a criança, ele poderia ter morrido.

Então, um grupo de médicos anestesiologistas procurou Laerdal e disse que precisava de uma boneca para demonstrar uma técnica de ressuscitação recém-desenvolvida — um procedimento conhecido como RCP (ressuscitação cardiopulmonar). Neste momento, os médicos encontraram um ouvinte atento e receptivo, já que Laerdal estava traumatizado com o evento ocorrido há pouco tempo com o filho.

Estes pesquisadores, principalmente o médico austríaco Peter Safar — que ajudou a criar a ressuscitação cardiopulmonar — embarcaram com Laerdal em um projeto histórico: fazer um manequim, em tamanho real, que as pessoas pudessem usar para praticar técnicas de salvamento.

Asmund Laerdal, o fabricante, testando sua criação no rio

Para o fabricante acostumado a produzir carrinhos e bonecos simples, foi um desafio fazer um manequim realista do corpo humano e funcional, com aparência e textura realista, que pudesse demonstrar de forma confiável as complexidades físicas da ressuscitação.

Além das questões técnicas, uma grande pergunta surgiu: qual seria o rosto deste boneco gigante que seria replicado e usado nas escolas de medicina?

Foi quando Laerdal se lembrou de um meio sorriso estranho e enigmático, uma feição que lembrava um sono leve, agraciado por toda a Europa. Uma máscara serena que viu pendura, na parede da casa dos sogros, como objeto de decoração: o rosto de L’Inconnue.

Laerdal decidiu manter o nome Anne para sua nova criação de uso médico; um novo manequim com o rosto de L’Inconnue, junto com um corpo de tamanho adulto, possuindo tórax dobrável para praticar compressões e lábios abertos para simular a ressuscitação boca a boca.

Os lábios mais “beijados” do mundo

Laerdal sentiu que era importante que o manequim fosse uma mulher, suspeitando que os homens na década de 1960 relutariam em praticar a ressuscitação usando um boneco masculino, devido ao forte machismo.

O manequim recebeu o nome de Resusci Anne (Resgate Anne). Desde que se tornou disponível na década de 1960, a Resusci Anne não foi o único manequim de RCP no mercado, mas é considerado o primeiro e mais bem-sucedido “simulador de paciente” de todos os tempos.

Este manequim médico é responsável por ajudar milhões de pessoas, em todo o mundo, a aprender o básico de como salvar uma vida com a ressuscitação cardiopulmonar.

Hoje, a empresa Laerdal é uma multinacional que desenvolve até programas para uso de profissionais de saúde e hospitais, presente em 25 países com 2.000 funcionários. Mas, a sede continua na Noruega, em Stavanger.

L’Inconnue ou A Desconhecida do Sena, tornou-se Anne para o mundo e, ao longo de 60 anos, foi o boneco mais usado para contato boca a boca, recebendo o título de “o rosto mais beijado de todos na história” — uma forma de homenageá-la, mesmo sua identidade permanecendo um mistério.

O impacto deste manequim foi enorme. A incorporação de características faciais realistas de Resusci Anne ajudou a aumentar a veracidade do treinamento de ressuscitação, tornando o RCP mais intenso e estressante para que médicos, enfermeiros e profissionais de saúde pudessem lidar com a realidade de socorrer uma pessoa.

O tempo distorcendo a realidade dos fatos

Com o tempo, a réplica de L’Inconnue do boneco de ressuscitação, tornou-se famosa. Hoje, no entanto, muitos duvidam que as características perfeitas da máscara de A Desconhecida do Sena possam ter vindo de uma menina afogada.

Muitos céticos sugerem que o rosto de um cadáver, especialmente um recuperado de um rio, seria deformado, inchado ou com cicatrizes, sendo impossível tanta perfeição. Alguns acreditam que o molde foi feito de uma pessoa viva e não de um cadáver.

Mas, para os pesquisadores que, de forma independente, estudaram a história de L’Inconnue — como a pediatra Megan Phelps, da Escola de Medicina da Universidade de Sydney, que viajou para Paris como parte de sua pesquisa — a riqueza do mistério é sua própria recompensa.

Muitos cenários sobre sua existência, morte e como chegou a se tornar um rosto famoso em todo o mundo são hipotéticos. Provavelmente, nunca saberemos qual é a sua verdadeira história.

Como ninguém jamais reconheceu o corpo, A Desconhecida do Sena foi descartada em um túmulo de indigentes, sem nenhum tipo de identificação que pudesse, hoje, ser usado para descobrir sua origem, e os registros policiais da época não fazem menção a garota misteriosa, justamente por ser uma indigente.

Os historiadores acreditam que jamais saberemos quem foi L’Inconnue. Quem quer que tenha pertencido esse rosto, a história final de A Desconhecida do Sena, é algo que transcende qualquer pessoa: um rosto que se tornou uma máscara que incorporou um ideal de beleza por gerações na Europa.

Logo depois, tornou-se algo ainda maior: a face literal de uma técnica para salvar vidas que impediu que milhões morressem por parada cardíaca.

Fonte(s): Science Alert / Slate / BBC / El Tiempo Imagem de Capa: Reprodução / Science Alert Foto(s): Reprodução / Science Museum / Slate FR / Science Alert / Arquivos de Domínio Público

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