Veja o que o mito grego de Eros e Psiquê pode ensinar

de Gustavo Teixera 0

Os mitos gregos podem vir acompanhados de ensinamentos que são válidos até os dias de hoje, afinal, eles tratam de problemas atemporais da condição humana.

O maior estudioso na área de mitos, Joseph Campbell, diz que os mitos não são uma mentira, são, na verdade, poesia e metafísica que conectam verdades em diferentes histórias. Um dos mitos que chama a atenção é o de Eros e Psiquê, e sua análise pode ajudar a compreendê-lo melhor.

Confira agora o mito de Eros e Psiquê seguido de uma análise:

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O Mito de Eros e Psiquê

Psiquê era a mais bela filha de Mileto, um rei mortal. Ela era capaz de despertar a admiração de qualquer pessoa, tanto que vários viajantes de lugares longínquos vinham para apreciar tamanha beleza, pois jamais veriam alguém tão bela em vida.

Na Grécia Antiga, só era conhecida a beleza de Eros, o deus do Amor, e de sua mãe, Afrodite, a deusa da Beleza, de forma que as pessoas estranhavam uma mortal tão anormalmente bonita.

As irmãs de Psiquê, que não eram tão belas, logo se casaram, porém, a jovem não, pois nenhum homem tinha coragem de casar-se com ela e assumir tamanha responsabilidade.

O rumor de sua beleza chegou à Afrodite, que ficou muito zangada. Afrodite, a fim de não perder sua autoridade como deusa da Beleza, convocou uma reunião com os outros deuses do Olimpo, e todos concordaram com o plano que ela havia elaborado.

O rei, preocupado com o destino da filha solteira, resolveu consultar os oráculos e todos eles deram a mesma resposta: Psiquê não havia encontrado um pretendente por seu destino já ter sido traçado pelos deuses. Ela estava condenada a casar-se com um terrível monstro e ele nunca mais veria sua própria família. Os pais, muito tristes pelo destino da filha e temerosos de contrariar ordens superiores, obedeceram às ordens dos deuses: eles deveriam vestir Psiquê com roupas nupciais, para que ela fosse desposada pelo dito monstro.E assim fizeram: banharam-na, vestiram-na com os trajes e deixaram a jovem no alto do rochedo.

Já cansada de esperar o marido, Psiquê adormeceu, até que um vento muito forte, Zéfiro, levou-a pelos ares. Psiquê foi transportada para um lindo vale. O local parecia um cenário de sonhos: havia um castelo enorme de mármore e vozes sussurrantes lhe informavam tudo o que precisava fazer.

Ela foi guiada a um enorme banquete, com as mais diversas especiarias pelas vozes e depois para um quarto muito aconchegante. Ao ir para o aposento, logo percebeu que alguém a acompanhava e a voz lhe disse “sou o seu marido”, de forma que ela descobrira então que era este o marido que lhe havia sido predestinado que, todavia, estava usando um manto e uma máscara.

Ele era extremamente carinhoso e a fazia sentir bastante amada, nunca deixando faltar nada para o seu bem-estar. Todavia, havia uma condição: ela não poderia ver a sua face.“Você precisa confiar em mim, pois um dia irá saber. Se vir minha face, me perderá para sempre. Apenas confie”, dizia ele. Psiquê concordou com a condição e permaneceu com ele, muito feliz por sinal.

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O marido aparecia somente à noite, deixando tudo ao seu dispor, de forma que, quando amanhecia, desaparecia. Com o passar do tempo, mesmo se sentindo extremamente feliz porque seu marido era o melhor dos esposos e a fazia sentir o mais profundo amor, ela resolveu fazer-lhe um pedido arriscado: o de ir visitar seus pais e as irmãs, mesmo sabendo que era contra a regra do oráculo. O esposo, após muita insistência de Psiquê e contrariando a regra dos deuses, informou que algo terrível aconteceria. Psiquê continuou insistindo até que ele permitisse, por fim, que as irmãs a visitassem.

Ao chegarem, as irmãs se depararam com o grande palácio e sentiram muita inveja de Psiquê, pois além de não serem tão bonitas quanto ela, seus maridos não detinham tantos bens. Elas encheram Psiquê de perguntas sobre o marido e sua aparência, de maneira que a jovem acabou revelando que nunca houvera visto seu rosto anteriormente. Elas especularam: “Psiquê, você já pensou na possibilidade de que seu marido seja um monstro? Você deve ver seu rosto para ter certeza!”.Após irem embora, a dúvida permaneceu na mente de Psiquê.

Dias se passaram e, em uma das noites, ela pediu para que o marido deixasse ver o seu rosto, o que foi prontamente negado. “Você deve confiar em mim, Psiquê” – replicava o marido. Num outro dia, a jovem ainda se sentindo sozinha, pediu ao marido que a deixasse pelo menos ver as irmãs pela última vez. Ela alegou que nada havia acontecido da última vez que se encontraram, convencendo por fim o marido a permitir a visita novamente, de forma que este a advertiu, mais uma vez, para que ela tivesse muito cuidado com as próprias irmãs.

As irmãs chegaram e retomaram assunto sobre ela nunca ter visto o rosto do homem. Psiquê, vencida pela dúvida, pergunta para as irmãs como ela poderia então fazer para ver o rosto do homem. Uma delas respondeu: “Leve uma vela e uma faca. Ao anoitecer, quando ele adormecer você acende a vela e, no caso dele ser um terrível monstro, mate-o imediatamente antes que ele ataque.”

Nessa mesma noite, com o coração totalmente tomado pela curiosidade, após o homem adormecer, ela acendeu uma vela e procurou ver o rosto do marido. Para seu espanto, viu o próprio Eros, criatura de extrema beleza e ficou totalmente extasiada e encantada pelo marido, que teria feito esse pedido para que a esposa se apaixonasse pelo que é, e não somente por sua beleza. Psiquê ficou tão deslumbrada pela visão do esposo que não percebeu que uma gota da cera da vela pingara no peito do amado e isso o fez acordar assustado. Ao ver que ela tinha quebrado a promessa, prontamente desapareceu, como num passe de mágica, junto com o palácio e tudo o mais.

Sozinha e infeliz, Psiquê começou a vagar pelo mundo. Um dia, em extremo sofrimento e amargura, de tanto implorar aos deuses uma nova chance, ela foi levada para a presença da própria Afrodite. “Você desobedeceu a ordem dos deuses, perdeu meu filho para sempre” – disse Afrodite. Psiquê, após tanto implorar dizendo que faria de tudo para ter o amado de volta, se submeteu aos desafios de Afrodite.

O primeiro deles foi o seguinte: Afrodite levou Psiquê a uma sala onde havia uma enorme pilha de grãos, todos misturados. A jovem deveria separar a pilha em pequenos montes de feijão, ervilha, milho, cevada e outros grãos que ela mal conhecia antes do anoitecer. Incrédula diante de tamanho desafio, Psiquê se desanimou, até surgir um pequeno grupo de formigas que se encarregou do trabalho, colocando cada grão em seu devido monte.

Não acreditando em como ela conseguiu realizar a tarefa, Afrodite colocou um segundo desafio: obter um punhado de lã dourada dos carneiros selvagens. Desta vez, Afrodite acompanhou Psiquê até um campo onde pastavam os carneiros, animais extremamente perigosos, mas dotados de algumas mechas de tal lã. Psiquê sabia que poderia ser morta ao chegar perto deles e, mais uma vez, não acreditou que conseguiria realizar sua missão. Quando deixou o desespero de lado e passou a observar os carneiros, percebeu que os animais se coçavam esfregando-se nas árvores. Psiquê esperou, então, o anoitecer e, quando os animais se afastaram, colheu calmamente os fios dourados que ficaram nas árvores.

Isso foi terrível para Afrodite, que elaborou desafios impossíveis para que Psiquê entendesse o valor do “o perderá para sempre”. Assim, atribuiu uma terceira tarefa: Afrodite entregou a Psiquê uma jarra de cristal que deveria ser cheia com a água negra que caía de uma cascata muito alta. Para chegar perto da água, Psiquê precisava caminhar pelo musgo, portanto poderia facilmente escorregar, cair e quebrar a jarra. Era praticamente impossível alcançar aquela distância toda e apanhar a água com segurança.

Eis que uma águia se tornou a solução: o animal apanhou em seu bico a jarra, encheu-a d’água e voltou, entregando-a com segurança nas mãos de Psiquê. Mais uma vez, não acreditando na capacidade da jovem, Afrodite lançou o quarto e último desafio: Psiquê deveria descer até o submundo para pegar uma caixa e entregar à Afrodite. Além do medo do mundo subterrâneo, a moça sabia que encontraria diversos espíritos que lhe pediriam ajuda, tentariam dissuadi-la de realizar a tarefa ou simplesmente dificultariam seu trabalho.

O grande desafio de Psiquê era manter-se fiel ao seu objetivo. Algumas vezes, disse não às pessoas que a interpelaram, outras vezes, as atendeu, mas nunca deixou de priorizar suas metas. Assim, ela chegou ao mundo subterrâneo e pegou a caixa das mãos de Hades. Porém, no caminho de volta, Psiquê não pôde conter sua curiosidade e abriu a caixa: prontamente ela caiu em um sono profundo com o pó de Morfeu que havia dentro do objeto.

Eros, consternado com a situação, implorou misericórdia a Zeus, que depois de muito declinar, acabou aceitando suas condições. Afinal das contas, foram atribuídos a ela desafios impossíveis, mas ela conseguiu realizar todos. Ele então a beijou, e Psiquê foi transformada numa deusa, de forma que jamais poderia voltar ao mundo dos humanos. Eles então se casaram no plano dos deuses e nunca mais se separaram.

Análise

Este mito de Eros e Psiquê pode transmitir muitos valores. O primeiro a ser notado é que Psiquê sempre se mostrou ser diferente dos demais seres humanos, o que significa um valor intrínseco, que pode ser comparado às virtudes. Virtude e pessoas virtuosas são admiráveis na sociedade, mas poucos se assumem virtuosos, pois assim se torna possível viver experiências que podem ajudar em nossa evolução.

O temor de vida das pessoas pode ser comparado com um arqueiro com poucas flechas em uma floresta. Nesse caso, ele não vai desperdiçar suas poucas flechas e vai procurar ser certeiro no alvo. Psiquê, que estava destinada a se casar com um monstro, representa a desenvolvimento do conhecimento e a saída da ignorância, pois quanto mais conhecimento é adquirido, mais se percebem as leis do universo em si.

Pode ser doloroso sair do comodismo proporcionado por uma crença, pois assim é possível perceber que os próprios humanos são responsáveis pelas suas tragédias. Guerras, mortes e crueldade são resultado da falta de conhecimento, e é mais fácil culpar o próprio evento ou divindades por essas coisas. Quando Psiquê se une a Eros, ele não se revela, pois ela deveria provar seu amor através da confiança. Nesse caso, a dúvida imposta por suas irmãs abalou as estruturas de Psiquê, assim como os ideais da sociedade agem sobre os seres humanos.

Desafios de Afrodite

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Ao notar o erro cometido, Psiquê volta a ficar só, o que a deixa infeliz. Ele percebe o erro que cometeu ao abandonar Eros e passa a cumprir os desafios impostos por Afrodite. No primeiro desafio, ela trabalha o discernimento, pois para realizar a tarefa de selecionar os grãos, ela deveria ter conhecimento. Já no segundo desafio, ela trabalha a percepção ao criar estratégias para pegara lã de carneiros selvagens sem se ferir.Nos mitos, os animais selvagens representam o instinto e questões internas que os seres humanos devem dominar para evoluir.

O terceiro desafio, que é solucionado pela águia, representa a sabedoria, pois esse animal pode enxergar tudo quando voa alto. Nele, Psiquê enfrenta um processo de controle emocional. O último desafio parecia ser fácil, porém é o mais enganoso. Trata-se de descer até o inferno e pegar a caixa de Hades. Na mitologia, o fogo representa o intelecto.

Psiquê desceu a um plano escuro de sua mente e foi vencida pela curiosidade de fazer algo que não era de sua conta. Essa parte mostra que o ser humano está propenso a se desviar de seu caminho e não cumprir ordens explicitamente estabelecidas.

O que podemos aprender?

O mito pode transmitir valores como superação, persistência e aprimoramento pessoal. Nele, é possível perceber que forças impostas pela sociedade podem atrapalhar a vida de alguém. É preciso manter firmes nossos próprios valores para seguir em frente.

Fonte: Paulo Rogério da Motta Fotos: Reprodução / Paulo Rogério da Motta

Jornal Ciência